terça-feira, 22 de julho de 2008

COM O FILME FOI-SE O BOSQUE

 

As filmagens do longa-metragem baseado no meu segundo livro, “Os Famosos e os Duendes da Morte” chegaram ao fim aqui em Lajeado. Foram três semanas de grande intensidade para as mais de cinqüenta pessoas, vindas dos mais distantes pontos da America Latina,  para dar vida a um a história que escrevi contando um pouco do que foi a minha adolescência aqui nessa região. Agora Lajeado será eterna nas telas de cinema do mundo inteiro. Dentro de pouco tempo milhares de dvd’s chegarão às locadoras de todo o país, difundindo nossas belezas e o nosso povo. Agradeço do fundo do meu coração por toda a comunidade que se mobilizou para que a nossa cidade aparecesse mais bonita para o mundo. À toda a figuração, aos restaurantes que tão bem nos alimentaram, ao hotéis, motoristas, aos atores, aos músicos da região. Lajeado estará belíssima na tela. Nós, lajeadenses, teremos um pouco mais de orgulho ao dizer que somos daqui.

Eu poderia estar feliz. Nesse último dia em lajeado saí para andar pelas minhas ruas. Essa cidade é minha, assim como é das mais de setenta mil pessoas que fazem daqui o seu lar. Caminhei para me despedir antes de voltar à Berlim onde darei continuidade a mais um projeto envolvendo literatura e cinema.

Eu deveria estar feliz. Mas não estou. Caminhar por Lajeado me encheu de uma tristeza profunda. De uma raiva frustrada. Caminhar por Lajeado me fez entender que esse não é mais o meu chão. Essa não é mais a minha terra. Pena. Triste.

Descendo a Avenida Bento Gonçalves, quase na rua Alberto Torres, o céu parecia mais nítido. Alguma coisa parecia diferente na paisagem. De longe era um pouco complicado entender o que estava diferente.

Alguns passos foram o suficiente para que eu entendesse a gravidade daquela estranha visão. Alguém havia roubado um pedaço da nossa paisagem. Alguém havia tirado de nós o nosso bosque. Não importa quem seja o dono. Não importa no nome de quem estava a centenária araucária localizada no exato ponto em que a Bento Gonçalves se encontra com a Alberto Torres. Não importa dar nome aos bois. Nem aos burros. Nem aos ignorantes.

A araucária não está mais lá. Junto com ela foi-se o bosque. Junto com o bosque foi se uma paisagem. Junto com a paisagem foi-se mais um pedaço de Lajeado. Mais um pedaço de mim. Mais um tanto da nossa história.

Pelo menos o filme está feito. Pelo menos um pouco de nós eu consegui prender nos meus livros. Pelo menos havia um senhor com a sua bengala, e ele também olhava atônito para aquela paisagem de destruição. Fiquei parado ao lado dele como quem vela um morto sem ainda ter se dado conta da sua morte. Olhávamos para uma paisagem que não estava mais lá. Ele tremia e os seus olhos choravam. “Estão acabando com tudo”, ele disse, e me perguntou se eu tinha estudado naquela escola. Respondi que não. “Ainda bem”, ele me respondeu. “É triste ver o que a nossa escola está fazendo com ela mesma”. Ele tirou os óculos e foi embora. Seus passos lentos não olharam para trás. Eu fiquei mais um tempo sentindo a terra e as raízes expostas daquelas árvores que um dia foram um bosque. Que um dia foram Lajeado. Que um dia foram minhas. Os galhos todos no chão. As lembranças desaparecendo devagarzinho, para nunca mais voltar.

Olhei para o colégio Alberto Torres e senti muita raiva. Senti muita vontade de gritar. Senti vontade de escrever sobre a ganância. Sobre a absoluta incoerência que leva uma escola a depredar a paisagem da minha cidade. Senti vontade de questionar os alunos, os professores, os funcionários. Eu queria saber se todos concordavam com aquilo. Será que os professores também foram a favor da queda de todos os séculos que aquela araucária carregava? Será que os alunos sabiam e achavam certo que um bosque inteiro fosse removido do coração da nossa cidade? Pouco a pouco a minha raiva foi dando lugar a uma grande pena e a uma triste constatação de que estamos todos perdidos. De que não somos donos de nada. De que as nossas lembranças não estão nas nossas mãos. Quando a escola mais tradicional da cidade destrói a própria história a olhos vistos, pouco resta a ser feito a não ser lamentar. E chorar profundamente sobre a ignorância do ser humano. Sobre, como disse Caetano Veloso, “a força da grana que ergue e destrói coisas belas”. O desejo incontrolável de se destruir e de se destruir e de se destruir a qualquer preço, custe o que custar. Doa a quem doer.

Chorei lembrando da araucária e daquele bonito bosque que deixava um pouco menos triste a nossa cidade. Agora acabou. Em breve teremos mais paredes. Em breve mais alunos sentarão em mesas onde um dia houve um bosque. Em breve todos esqueceremos. E todos seremos esquecidos. As tradições serão perdidas. As reputações serão destruídas. As escolas não mais serão exemplo de educação e respeito ao meio ambiente, nem ao próximo, nem à cidade que a fez crescer.

À tarde telefonei para a escola. Havia uma esperança. Talvez aquela área de terra não pertencesse ao Alberto Torres. Talvez fosse de propriedade de algum empresário ávido pelo lucro. Talvez o Alberto Torres não fosse o responsável por mais essa barbárie. Talvez ele não fosse o assassino de um bosque.

Quando o funcionário da escola atendeu ao telefone tivemos uma breve, porém esclarecedora conversa:

-       boa tarde. Gostaria de saber se os responsáveis pelo desmatamento do bosque na esquina da Bento Gonçalves com a Alberto Torres foi a própria escola.

-       Sim. Mas aquilo não foi desmatamento. Foi a remoção de arvores para construção de um prédio.

-       ah, que pena.

E assim terminou o nosso triste diálogo. E assim vou me embora de Lajeado carregando na bagagem um pouco menos de vontade de voltar. E assim me preparo para sempre perder um pouco mais. Para sempre me decepcionar com a ignorância humana. Para sempre esperar pelo pior de quem somente deveria nos ensinar a plantar. Nos ensinar a preservar. Nos ensinar a manter o pouco que ainda temos de belo. Pobres alunos. Pobres professores. Pobre senhor Alberto Torres. O seu nome ficou mais feio depois desse inverno. Nosso ar ficou mais sujo depois desse julho.

Mas logo esqueceremos. E tudo seguirá igual. E nem vai doer tanto assim. Foram apenas algumas árvores. Foi apenas uma remoção para construção de um prédio. Melhor assinar abaixo-assinados em favor da Amazônia...

 

Trise. Triste fim para um filme que poderia ser belo. 




























Um comentário:

alberto disse...

que belo texto. poderoso. e triste. já comecei a leitura. é cortante. folhas de bambu. amanhã reestrearemos "vestido de noiva". wish us luck. grande abraço

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