terça-feira, 8 de julho de 2008

um passarinho. dois.

era cedo na manhã do domingo. a chuva da noite tinha ficado para trás. um vento quente entrou pela janela do banheiro e fazia sol do outro lado do vidro. fiquei um tempo olhando para mim mesmo dentro do espelho. a água saía da torneira e escorria pelo cano. até onde ela poderia chegar?  meus olhos pareciam acordados há muitos anos. não era como se fosse manhã para os meus olhos. eles estavam despertos e eu parecia tão bonito. eu não tinha consumido nenhum tipo de droga, mas me sentia belo naquela hora da manhã daquele domingo que passou. sempre que me vejo bonito, o primeiro pensamento que me vem é "o que foi que eu tomei para ficar assim?" ou "o que foi que eu bebi para pensar assim?" ou "preciso aproveitar antes que isso passe".


quando tomo ácido eu me sinto sempre realmente belo. quando cheiro cocaína eu me sinto acima da média da beleza e, mesmo sabendo que não sou tão belo, sei que sou mais do que a maioria das pessoas. quando fumo eu me confundo e nunca consigo me olhar por tempo demais. acabo sentindo medo, angústia, qualquer coisa ruim e que me desvia de mim. do meu eu exterior.


mas eu não tinha feito nada dessas coisas que são erradas de se fazer e que a gente só faz até uma certa idade (ahahahhahahah). nem bebido vinho eu tinha. era cedo demais de um domingo de manhã e o inverno parecia ter dado uma trégua e eu resolvi, naquele momento, em frente à pia daquele banheiro, que aquele seria um domingo perfeito. lembrei de você. há quanto tempo nós não nos víamos? como você estaria agora? onde você estaria naquele domingo? pq eu não podia estar contigo? pq não crescíamos juntos? pq vc não crescia comigo?


fiz a barba e, estranhamente, eu continuava me sentindo belo. as palavras do juiz voltaram à minha cabeça e eu não ficaria longe de você esperando uma solução de pessoas que não nos conheciam.  a justiça nem sempre é justa. meu coração doeu um pouco mais e eu faria qualquer coisa para passar por cima dos outros e chegar perto de ti.


na frente de casa a grama estava verde e o sol brilhava alto. a natureza eram todos os sinais de que o mundo seria belo se eu fizesse alguma coisa por nós. o sol brilhando seria a chave para que eu tomasse alguma atitude. um passarinho parou de voar perto de mim e ele tinha o peito amarelo e ele piou alto e depois desapareceu dentro do pé de manga. a imagem de um ninho cheio de filhotes famintos era a saudade que eu sentia de você. a passarinha esperando o papai alimentar os pequenos era a sua fome que não me deixariam matar. os bicadinhos na testa dos passarinhozinhos pequenos eram os carinhos que não tivemos para nos dar. qual seria o tamanho das suas mãos? para quem os seus olhos sorriam agora? quantos quilos você ganhou desde a última vez em que te levantei nos meus braços?


peguei as chaves do carro. antes de dar a partida voltei correndo para dentro de casa. peguei a cadeira de praia. peguei um espeto e uma garrafa de álcool. aquele seria um domingo perfeito e você estaria comigo. não importaria nada mais além de nós dois e além do sol que brilhava tão lindo e de todas as famílias de passarinhos felizes se escondendo dentro de todas as árvores da nossa cidade. nós dois estaríamos juntos meu passarinhozinho e você me faria voar sobre o domingo e o domingo seria perfeito para nós dois.


escondi o espeto e a garrafa de álcool dentro do porta-malas e joguei a cadeira de praia no banco de trás. poucas ruas nos dividiam. liguei o limpador e as merdas dos passarinhos foram, pouco a pouco, sendo lavadas do para-brisa. pensei em lavar o carro para você não sentir o cheiro do meu cigarro. pensei em lavar o carro para não levantar suspeitas. o policiamento tem sido ostensivo nos últimos meses. todo o cuidado é pouco. um carro bem lavado sempre levantará as menores suspeitas. 


avancei algumas ruas até chegar à sua e o domingo brilhava o sol sobre o mês de julho. no meio do inverno uns poucos raios nos aqueceriam e nós dois teríamos a eternidade de uma tarde de domingo somente para nós dois, meu passarinhozinho. eu seria o seu passarão-pai e nós dois voaríamos para longe e nós dois seríamos as asas que nos arrancaram. eu limparia as suas penas dos piolhos de passarinho e você devolveria a força aos meus braços até que você voasse sobre mim e até que você olhasse nos meus olhos e dentro deles encontrasse o seu pai de verdade que sou somente eu e sempre eu. e eu te lamberia os olhos até entender dentro do seu gosto o sabor exato de um filho quando volta para casa para nunca mais partir. seríamos um mesmo na tarde eterna do domingo perfeito.


coloquei um cd da joni mitchell para tocar e acelerei um pouco mais. antes de chegar na sua rua eu parei de andar rápido. você poderia aparecer a qualquer momento e você poderia estar mais perto de mim e o que eu faria com você não seria sequestrar criancinhas. o meu amor te deixaria um pouco assustado no comecinho, mas depois seríamos um só e a tarde que eu te daria seria nossa para sempre.


fiquei parado na esquina da sua casa. o motor parou de fazer barulho e uma senhora foi até o portão. talvez ela esperasse uma visita. talvez eu fosse o seu filho que nunca mais voltou. talvez ela soubesse de tudo o que eu pensava em fazer com você. talvez ela soubesse que eu planejava partir para muito longe levando você comigo. ela não sabia que os crimes sempre compensam. todo o crime sempre será recompensado quando praticado com o amor correspondente à dor que ele pode causar.


na frente da casa da sua mãe a rua parecia mais calma. liguei o motor e acelerei um pouco. avancei alguns metros e parei outra vez. a sua casa parecia vazia. abri a porta e saí do carro. o ar estava tão quente e tudo era um sinal para que eu avançasse um pouco mais. o gramado na frente da sua casa eram os seus caminhões de plásticos e a sua pequena bicicleta com rodinhas para te equilibrar. você já tinha idade para andar sem rodinhas. o tempo passa rápido demais. meu filho crescia sem que eu aprendesse a me equilibrar longe dele. meu filho ganhava velocidades, mas o medo de cair será sempre maior para os passarinhos sem pai. para as bicicletas sem rodinhas. a porta da sua casa se abriu e ela saiu te carregando no colo. assim que vocês chegaram na rua ela parou e te colocou no chão. você levantou os braços e talvez você tenha chorado e ela bateu com carinho na sua cabeça e os cachos loiros do seu cabelo eram os meus antes de ser teu pai. depois ela caminhou e você continuou parado na calçada sem saber o que fazer. ela andava olhando para a frente e ela iria embora sem olhar pra trás e ela te deixaria sozinho. elas sempre irão embora. cedo ou tarde, você também ficará para trás, meu pequeno. cedo ou tarde eu teria que ser o seu pai e você o meu filho.


você se virou para ver a rua às suas costas e eu estava lá. ela continuava andando sem notar que você não estava mais com ela. eu abri os braços e o tubo de àlcool explodiu no porta-malas. você abriu todos os sorrisos e a ponta do espeto ganhou fio mais perto de nós. 


de braços abertos o pássaro grande se ajoelhou na calçada e o passarinhozinho pequeno foi correndo até ele e a pássara grande que era a sua mãe te viu voar até mim. quando nos abraçamos o domingo virou a cena de um filme que nunca sairía de nós. ela gritou e os seus passos correram até nós. antes que eu pudesse girar com você nos meus braços e antes que o tempo pudesse parar e antes que a rua sorrisse o pai e o filho abraçados eu tive que te jogar dentro do meu carro. e eu precisei acelerar sem te amarrar no banco de trás e eu precisei correr e avançar estradas e encontrar algum atalho que nos levasse para perto do rio.


quando chegamos no rio você sorria e você pediu para eu correr mais forte e eu sabia que éramos feitos do mesmo tipo de amor. "agora nós não precisamos mais correr". nossas asas nos aqueceriam e você nunca mais ficaria sozinho meu pequeno passarinhozinho.


helicópteros nos perseguiriam, mas as nossas asas nos fariam fortes contra todos os ventos e aquela era uma tarde de domingo e aquele era o primeiro sol de todos os domingos que seríamos eu o seu pai e você o meu filho daquele dia até todos os que chegariam depois desse.


descemos do carro. eu te vi correr na grama verde e o rio estava cheio de inverno. liguei o rádio e ficamos correndo na grama como se fôssemos os dois uma propaganda de leite. ou de comida para café da manhã. ou de celular. éramos o comercial de tudo o que aproxima os que se amam. éramos o lanche da manhã. éramos a força que nos manteria juntos para sempre. o calor dos laços de sangue. o amor quando não deixa dúvidas. as fugas quando não deixam rastro.


depois as suas perninhas ficaram cansadas de correr e nós voltamos para dentro do carro. eu abri a cadeira de praia e ela era o seu abrigo contra as bombas nucleares que explodiriam em tão pouco tempo sobre nós. abri o porta-malas e o álcool estava lá e o espeto seria o churrasco que nunca fizemos e você seria a carne para que eu continuasse forte. fechei os olhos. o sol queimava. o sangue era vermelho dentro das pálpebras fechadas. o sangue é sempre mais quente. naquela tarde nós dois seríamos um só. eu e você seríamos o mesmo homem. eu te faria em mim e eu te ensinaria a andar como um deus caminhando na terra e eu te faria asas para ver o mundo lá do alto. lá em cima, naquele alto, ninguém nos tocaria. longe dos homens nós dois teríamos a nossa própria lei e não seria preciso mais estar vivo para continuar vivendo. 


partimos. e você voltou para mim. e eu ganhei a guarda definitiva sobre nós. o mundo é dos que são rápidos. a vida voa quando não temos asas.

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