sexta-feira, 3 de abril de 2009

Quando acordei fiquei enrolando um tempo na cama. Abri a janela e vi que o céu estava azul, mas o vento que entrou no quarto estava mais gelado do que ontem. Fechei o vidro e passei um tempo observando as janelas do edifício em frente. Uma menina brincava na varanda de um dos apartamentos. Uma mulher saiu e ficou sentada ao lado da garota olhando para mim, do outro lado do vidro da janela.

Abri o computador e o mundo parecia um lugar distante de onde nenhuma noticia parecia ter importância alguma. Aos poucos fui refazendo o itinerário de todas as manhãs. Abrindo emails. Lendo jornais de lugares onde não habito. Esperando que você atualize seu blogue. Fiz um auto retrato que logo foi deletado. Aos poucos a manhã foi ficando real. As horas correndo no relógio do monitor. A vontade de comer apareceu. Depois foi embora. Depois apareceu outra vez para sumir novamente. Sempre que sentia fome, sabia que, se suportasse um pouco mais, a vontade passaria. Todas as vontades passam se a gente espera um pouco mais. O perigo é esperar um pouco mais.

Quando o sol esquentou o dia e quando eu já não tinha mais nada para fazer no quarto, decidi que era hora de sair. Recolhi as roupas sujas para deixar na lavanderia, coloquei uma roupa confortável para caminhar pela cidade, guardei o computador na mochila e chequei se o disco do teenage fã clube estava arquivado no mp3. Não escovei os dentes para sentir melhor o gosto da comida que eu não suportava mais esperar. Olhei para mim mesmo no espelho antes de sair. Procurei as chaves. Procurei as chaves. Procurei as chaves. Elas não estavam lá. Abri a mochila. Elas não estavam lá. procurei as chaves. Procurei as chaves. Revirei os bolsos de todas as calças. Elas não estavam lá. O pior poderia acontecer. O pior havia acontecido. O pior sempre acontece. Sempre aconteceu. Sempre vai acontecer. As chaves haviam sumido. Eu sentia fome. E eu vi o prédio pegando fogo e eu morrendo queimado dentro dele sem conseguir chegar à saída de emergência por que eu havia perdido as chaves dentro do meu próprio quarto. Abri a geladeira e tudo o que havia dentro dela era uma garrafa de água pela metade. No armário dois pacotes de bolacha quase vazios e um resto de granola mofada.

Sentei na cama olhando para a parede e tentando calcular a quantidade de fome, subtraí-la da quantidade de alimento e descobrir se o resultado seria positivo ou negativo. Tentei afastar o medo de ficar trancado dentro do apartamento até que meu colega voltasse, mas o medo de sentir medo começou a crescer e eu pensei em fazer yoga para me acalmar. Eu sabia que uma invertida de dez minutos equilibraria alguma coisa dentro de mim. Mas fazer uma invertida implicava aumentar o risco de cair. De me machucar. De torcer o pescoço. Sentei na varanda para tomar um pouco de ar, mas o vento de algumas horas atrás não estava mais lá. Eu estava preso como havia estado desde quando acordara, mas agora consciente de não poder sair. Eu teria que passar o dia inteiro preso esperando ele voltar. Contei as horas que faltavam para o anoitecer. E era muito tempo. Mais tempo do que meu corpo suportaria. A fome aumentou, e eu esperei que ela passasse. Mas ela não passou, só aumentou. Eu já havia devorado o que sobrara dos dois pacotes de bolacha e o efeito sobre meu corpo havia sido proporcionalmente oposto ao esperado. Comer havia me deixado com muito mais fome. Pensei nas caloria inúteis que acabara de ingerir. Bolachas velhas eram uma mistura fatal de água, farinha e óleo., No caso delas, o sabor não compensa.

Depois de um tempo pré-pânico lembrei da dona do apartamento que mora do  outro lado da rua. Ninguém melhor do que ela para vir me resgatar. Virei toda a casa procurando o papel onde o numero estava anotado. Encontrei. Dentro do lixo. Tem sempre alguma vantagem em manter a sujeira perto de nós. Já faz algum tempo que deixei de lado o higienismo em prol da preservação dos feronomios da sexualidade. A sujeira da casa também tem seus efeitos positivos, mas tais efeitos ainda permaneciam desconhecidos por mim.

Apos combinar que dentro de meia hora ela viria me resgatar, decidi relaxar um pouco. Deitar na cama olhando para o teto enquanto pensava no que faria na rua e aproveitando os últimos instantes daquela efêmera sensação de prisão. A duvida entre passar o dia trancado dentro de casa ou passar o dia trancado na rua ficou mais forte e eu achei que seria muita falta de educação se a mulher viesse me soltar e eu dissesse que mudei de idéia. Pensei em ligar para ela e cancelar tudo. Mentir que havia encontrado a chave  e que tudo estava bem e muito obrigado pela sua atenção. É sempre complicado quando não existe nenhuma outra opção entre ficar toda a tarde na rua ou ficar toda a tarde dentro de casa. Melhor ficar na rua. Na pior das hipóteses, poderia encontrar meu amigo, pegar minha chave e voltar para casa. Mas eu não sabia onde meu amigo estava, ele não tem celular e quando a gente precisa os encontros casuais nunca acontecem.

A campainha tocou. Uma voz gritou do outro lado da porta: é a Marta! E eu pensei que como é bom ouvir um nome conhecido. Que como é bom ouvir alguém falar o seu nome nessa cidade onde você não está. Que como é bom ser resgatado e poder sair sentindo a liberdade total e completa de um dia de outono em uma cidade desconhecida. Peguei a mochila, a sacola de roupas sujas, calcei o tênis e Marta já estava na porta que ela mesma abriu com sua chave reserva e ela sorrindo para mim parecia ser muito, muito simpática e despreocupada. Enquanto enfiava o calçado com pressa para que Marta não perdesse ainda mais tempo com a minha falta de organização, emitia palavras do tipo: que lástima, jo te pieço desculpas, estoy inconsolable, mi amigo se fue com mis chaves, desculpe, mil perdones. Marta sorria na porta sem nada dizer.

Dentro do elevador percebi que ela era uma senhora muito bem arrumada, aparentando sessenta anos. Uma mulher de sessenta anos que não se travestia de mulher mais nova. Uma mulher com a idade exata dela mesma. Elogiei o apartamento e ela agradeceu. Depois comentou a minha sorte dizendo que havia justamente voltado para almoçar em casa no momento em que liguei. Se eu tivesse ligado mais tarde ela não teria como me resgatar. Perguntei se ela gostava de plantas, pois o apartamento tem muitas plantas, e ela apenas sorriu e falou que o apartamento era um antigo escritório de tradução. Depois que sua empresa cresceu ela teve que comprar um apartamento maior no centro antigo da cidade.

-       você trabalha com tradução?

-       Sim. Sou tradutora.

-       De qual língua?

-       Do inglês para o espanhol.

-       Você traduz romances?

-       Não. Traduzo novelas.

-       Sim... romances...

-       Ah sim. No Brasil vocês chamam novelas de romance.

-       Claro. Aqui vocês chamam romance de novela...

Não sei por quê, mas eu disse que era escritor.

-       sim. Eu sei que você é escritor.

-       Mesmo?

-       Sim. Eu sei tudo sobre você. Pesquisei no Google quando você me contatou para alugar o apartamento. Não gosto de brasileiros. Mas um brasileiro artista deve ser diferente dos outros.

O diálogo não foi exatamente assim pois eu não entendo quase nada dessa língua enrolada e apressada que eles falam por aqui.

-       que interessante você ser tradutora.

-       Vamos tomar um vinho? Minha reunião foi cancelada.

Fomos até um café na esquina. Ela conhecia todas as pessoas que trabalhavam no café pois todos a cumprimentaram pelo nome. Sentamos e Deixei minha sacola de plástico amarela com as roupas sujas na cadeira livre ao lado de sua bolsa de couro. Ela pousou as mãos sobre a mesa e os anéis tinham pedras coloridas e as pulseiras também tinham pedras coloridas que contrastavam com as mangas pretas da blusa de malha sem bolinhas. Notei que ela tinha os cabelos bastante pretos e brilhantes e presos em um coque muito bem feito.

-       sobre o que você escreve?

-       Eu? Ah... não sei dizer.

-       Como todos.

-       Quê?

-       Todos os escritores. Eles nunca sabem sobre o que escrevem.

Ficamos um tempo em silêncio. Coloquei um sorriso no rosto para pedir desculpas por ser igual a todos os outros escritores.

-       todos os escritores bons. Os medíocres sempre sabem sobre o que escrevem.

Tentei entender o que ela queria dizer com aquilo e pensei em dizer obrigado. O garçom nos serviu dois copos de vinho. Ela experimentou e pediu que ele trocasse. Disse que estava muito acido. O garçom retirou os copos e depois repetiu o mesmo gesto de distribuir dois copos limpos sobre a mesa, mas dessa vez servindo apenas uma pequena porção no copo dela. Ela cheirou e disse que estava bom. O garçom completou nossos copos e nós brindamos a nada especificamente. Apenas nos olhamos nos olhos e sorrimos e batemos nossos copos com não muita força para não quebrar. Dentro de mim eu disse “à sorte!” A ponta do sapato de Marta encostou na minha perna e eu esperei que ela tirasse. Mas não tirou. Mexi minha perna para que ela percebesse que encostava em mim, não na cadeira ou na perna da mesa, mas o seu sapato continuou colado em mim.

-  tenho duas horas livres. Voltamos ao seu apartamento?

       - Sim.

Subimos os seis andares dentro do elevador sem dizer nada. Ela abriu a porta e nós entramos. Ela olhou para a bagunça do meu quarto e eu pensei em pedir desculpas, mas depois lembrei que eu pagava para estar lá e não devia nenhuma explicação a ela. Empurrei ela na minha cama bagunçada e suja e ela sorriu. Depois de duas horas nós saímos e na calçada cada um seguiu para um lado diferente.

Passei a mão nos meus cabelos e notei que eles estavam secos. Entrei no salão de beleza da Honduras com a Thames e perguntei quanto custava uma hidratação. Lavei e hidratei e as mãos pesadas do cabelereiro não eram gentis com o meu pescoço e eu senti um pouco de dor nas costas por que ele manipulava minha cabeça de uma forma um pouco agressiva. No fim de tudo ele perguntou se eu queria secar com secador. Disse que não. Paguei e fui embora.

 Nas ruas de Palermo eu senti o sol quente nos meus cabelos molhados e o vento frio soprando mais forte sempre que eu chegava em uma esquina. Sentei no café onde venho todos os dias, e pedi um copo de vinho enquanto espero anoitecer para que eu possa voltar para casa. Meus cabelos estão hidratados e agora eu me sinto limpo. 

2 comentários:

alberto disse...

amei esse post longo e tão bom construído. estava com saudade da tua prosa. estou com saudade de você. grandabraço! guzik

quasechuva disse...

eu te amo porque voce ouve os meus conselhos. assim mamita ganha a vida!

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