sexta-feira, 27 de junho de 2008

quando eu tinha dezessete anos eu fui embora daqui pq eu não aguentava essa cidade. o mundo no interior do rio grande do sul era grande demais para mim. eu destoava da paisagem. as pessoas me olhavam de um jeito estranho, como se me dissessem que eu não era um deles. eu nunca pertenci a essa cidade. eu nunca pertenci a ninguém. por isso as brigas atravessando as madrugadas. minha mãe chorando. meu pai tentando entender. minha irmã namorando na sala. era assim. tentávamos nos suportar. eles tentavam suportar a idéia de eu partir tão cedo. imploravam uma faculdade. um diploma. uma vida segura. 

eu ria.
e só chorava antes de dormir quando eu rezava para algum deus que me arrancasse daquela casa. que me arrancasse dessa cidade.

quando eu tinha dezesseis fugi para o rio de janeiro, mas não fiz muita coisa. andava pelo catete vendo a cidade. passei quarenta e cinco dias. o tempo que durou a minha grana. eu sempre fiz dinheiro. de um jeito ou de outro. pintava estátuas de gesso antes de as lojas de 1,99 acabarem com o artesanato. dava aulas de teatro em escolas de gente rica. com 14 anos tive carteira de trabalho assinado. profissão: professor de teatro.
quando saí de casa para procurar emprego minha mãe me desejou sorte.
quando voltei no final do dia com a proposta de começar a trabalhar na semana seguinte, ela me contou que sentiu pena de mim. ela tinha certeza de que eu teria, naquela tarde, a minha primeira decepção. ela não sabia que a primeira decepção sempre foi ela não acreditar em mim. esperando que a minha vida fosse feita de decepções. ela, como a maioria dos alemães, sempre espera pelo pior. que é para a realidade não os pegar com as calças curtas. é assim a cabeça aqui.

quando voltei do rio de janeiro as ruas dessa cidade haviam ficado menores. todos os olhares eram para rir da minha cara. a minha volta era a minha derrota e a cidade grande não havia me aceitado. ainda bem. ainda bem.

com 16 anos eu era seguidor de um guru. 
com 17 anos eu larguei a vida que não queria e entrei em um ônibus. quando cheguei em sp era noite e chovia. eu estava na rodoviária com uma mala na mão. uma mochila pesada nas costas. e um sonho bem grande era eu. a cidade parecia que não existia. a rodoviária não tinha vidros. passei a noite sentado em um banco tentando imaginar o que eu poderia fazer quando o sol aparecesse. esperei o metrô abrir. eu não tinha nenhuma pessoa para procurar em sp. nenhum telefone. nenhuma cama. havia a grana para a volta, se as coisas dessem errado.

peguei um metrô e fiquei andando na rebouças. gostei das árvores e passei alguma horas andando por lá. chovia, mas era estranho. eu não me molhava. caminhei até encontrar um hotel que coubesse no meu dinheiro. fiquei em uma espelunca no largo da batata.

eu sabia que o meu guru estava em sp selecionando atores para uma peça. eu não sabia os horários. sabia que seria em um tal de sesc consolação. parei um táxi e perguntei quanto custava para ele me levar até o sesc consolação. fechamos o preço. e eu embarquei.

quando chegamos perto do sesc ele se perdeu e ficou vagando pelas ruas da santa cecília. paramos em um farol e o meu guru atravessou a rua. ele estava atrasado e corria para a seleção de atores da peça que eu faria.

saltei do táxi e comecei a gritar no meio da rua. o guru me olhou assustado e disse para eu não tocá-lo. comecei a chorar tentando explicar o que eu fazia lá,  naquela rua, naquela cidade, vindo de tão longe. depois ele me contou que eu parecia um matador. cabeça raspada, magreza profunda e olheiras salientes. eu mataria por amor. eu mato por amor.

o guru me jogou em uma sala com mais 400 atores de são paulo. a produtora pediu o meu currículo. eu pedi-lhe papel e caneta  e inventei um currículo de mentira. escrevi coisas que não fiz. inventei peças de minha autoria. direções. atuações em clássicos. minha vida sempre foi uma grande mentira. mas eu acredito nela. e é isso o que importa.

fiz a peça. ele me viu no meio dos 400 atores e eu fiquei com ele. depois ele me escolheu entre os atores da sua companhia e fomos para a europa. o mundo era grande demais para mim, ele dizia. ele dizia que eu precisava conhecer novas paisagens. viramos a europa assim. alugamos um audi e ensaiávamos uma ópera. eu carregava o mapa e as trouchinhas da sua cocaína. era dia do meu aniversário e ninguém sabia. nem ele. naquele dia eu fiz dezoito. paramos em um acostamento e ele pediu para eu fazer mais uma carreira. eu fiz e ele cheirou. depois ele olhou para mim e disse: fique longe disso, pó é uma porcaria. 

fiz mais uma carreira para ele. o mapa da alemanha ficou cheio de farelinhos brancos. no relógio marcavam seis e quinze. a hora exata em que eu nascia. lembrei da minha mãe. lembrei do mundo tão longe. o estofado de couro daquele audi estacionado em uma autobahn. a voz rouca da lauryn hill cantando no rádio. os pingos de chuva. a cocaína. eu precisava conhecer o mundo. ele sabia disso. ele me ensinou.

obrigado meu guru. o mundo ficou menor depois que entramos na mesma vida.
faz tempo que não te vejo. não sei se vc ainda lembra das coisas que eu lembro. mas eu te agradeço hoje. tanto tempo depois. tão longe daqueles dias. fugir de casa e ganhar um pai. foi assim que eu acreditei. o mundo é grande. a pior solidão está aqui. nessa pequena cidade. na cara das pessoas. na obviedade dos seus dias. obrigado meu guru. o mundo brilhou sempre mais depois que eu parti. obrigado. 

2 comentários:

quasechuva disse...

ai, não sei dizer de outro jeito, um dos melhores que tu já escreveu.
odeio comentários amplos, ainda mais quando eles cabem. mas sério, bom pra caralho.
p.s. voce foi tão humano, nossa que orgulho de ti

lili na cidade disse...

é estranho sentir que não se pertence a nenhum lugar...eu ainda sinto assim.
não encontrei meu guru na vida...ou talvez tenha encontrado vários...
sorte a sua.
GG

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