terça-feira, 21 de julho de 2009

Ultimamente tenho sido confrontado a pensar em uma relação sobre a qual pouco se fala nas grandes cidades: a vizinhança. A relação íntima com os vizinhos. A literatura evidencia a solidão nas grandes cidades. “A solidão nas grandes cidades” é um termo que sempre vai me remeter aos anos noventa, quando o ser humano permitiu-se a tristeza no seu estado mais sem vergonha.

Quando as máscaras caíram, a rebeldia deu lugar à depressão. E a depressão foi o único estandarte disponível para a nossa geração consumidora de arte.  Pegamos aquele lenço sujo de lágrimas e também fizemos dele a nossa bandeira. Nossos escarros internos. Sim. Naquela época vocês já haviam comido de muito abstracionismo e entender já parecia fácil o bastante para que nós não precisássemos mais nos preocupar com entender. A geração seguinte sempre nutrirá um certo desdém diante das conquistas dos seus pais.

O retrato acima é onde situo a solidão nas grandes cidades.

À medida que a solidão nas grandes cidades refletia a angustia dos metropolitanos, toda uma geração rural, aberta ao mundo pelo ócio e pelos primeiros ventos da internet, foi exposta a esse jorro depressivo produzido longe deles. Imersos nos intermináveis vazios, cada periferia era um pedaço do fim do mundo. O que vinha do outro lado do verde era soprado por ventos que tinham viajado o que nenhum de nós ousava sequer sonhar.  Foi lá, no meio das plantações, que nós descobrimos os escritores mais tristes, a bandas mais depressivas e os sorrisos mais assustadores. O que estava na TV quase não nos interessava, apesar de assistirmos simplesmente para fazer parte da mesma família.

O tempo passou e eu, agarrado a uma lufada mais forte de vento, consegui ir embora.

Cheguei em São Paulo carregando nas malas toda a “solidão das grandes cidades” que eu havia acumulado durante anos morando longe do mundo. Vim preparado para distancias frias. Para olhares de desprezo e ignorância espacial. Nada com o que eu não estivesse acostumado naquela pequena cidade germânica chamada Lajeado.

Foi quando os vizinhos entraram na minha vida. Aqui, em São Paulo, foi o que os vizinhos entraram na minha vida.

 

O vizinho numero UM

Na verdade era uma vizinha. A dona Luzia. Fui morar no porão de uma casa e o morador da parte de cima havia me precavido sobre as perversidades de dona Luzia. Dizia ele que a vizinha gritava no meio da noite ao menor sinal de um ruído alheio. No final da primeira semana o morador de cima já era meu melhor amigo e estava empenhado em me mostrar o mundo paulistano. Eu tinha 17.

Pouco a pouco o morador de cima foi ficando bem animado e começou a chamar amigos para me conhecer. Aos poucos as portas entre a minha casa e a dele foram se esquecendo de ser fechadas e logo habitávamos os dois a mesma casa. Dona Luzia começou a ficar louca com nossa convivência ruidosa e passou a nos berrar impropérios. Nós, vingativos, decidimos fazer por merecer. Trocamos nossos turnos, passando a acordar cada vez mais tarde. As noites regadas a risadas na nossa casa e a gritos de dona Luzia na cara dela, viraram rotina. Eu, que dormia na parte de baixo em um quarto cuja janela dava diretamente para a janela da cozinha da mulher, decidi radicalizar.

Conheci uma garota meio desligada que veio morar comigo. Ela era atriz e estava sem grana. A gente ficou morando juntos com a grana que meu pai mandava. Eu com 17 e ela com 20 e a gente trepava o dia inteiro. É aí que entra o “radicalizar”. Passamos a trepar com a luz do sol na nossa cara e os olhos da Luzia espiando entre as frestas.

Os gritos da velha foram diminuindo e as madrugadas passaram a ser iluminadas por uma triste luz que vinha da cozinha da senhora. Dona Luzia havia ficado, subitamente, calma. As manhãs foram ficando cada vez mais silenciosas e ela, antes vestida em constantes trajes sóbrios, passou a fumar na varanda em frente á nossa, olhando para a ameixeira amadurecendo cada ano mais rápido. De vez em quando, quando nossos olhares se cruzavam, ela perguntava se as folhas secas que caíam da sua árvore não sujavam o meu quintal. Um dia acordei ao meio dia. Lembro que demorou algum tempo até ela finalmente aparecer na varanda, com cara de sono,  um robe cor de rosa e, apoiada no batente, fumando longamente enquanto acordava para nós.

Os dias foram passando.

Um dia Dona Luzia perguntou se eu gostava de pinturas.  Diante da minha afirmativa, ela entrou na cozinha pedindo que eu esperasse. Saiu trazendo um óleo sobre tela que havia pintado. Disse que resolvera aproveitar as madrugas para começar a pintar e que as luzes e as conversas que saíam das nossas janelas no meio da madrugada,  faziam um tipo de companhia com a qual ela aprendia a se acostumar. Sua única reclamação sobre as madrugadas que agora ela também atravessava acordada, era de que dormir tarde a obrigava acordar também tarde: - sempre que eu me acordo tarde eu me sinto uma menina cabulando aula?

Dona Luzia além de me mostrar o desenvolvimento do seu trabalho como artista plástica, também me presenteava com guloseimas que preparava afim de suportar as tardes vazias sem nada para fazer. Bolos, bolachas de manteiga, pães embrulhados em um papel alumínio cuja temperatura levemente quente eu nunca vou esquecer, assim como nunca vou esquecer o cheiro do pão saindo do forno à lenha no fim de uma tarde de inverno no quintal da minha avó materna. Lajeado é uma cidade germânica.

Aos poucos, sons tristes passaram a ecoar de um piano. Percebendo que as melodias saíam da janela de Luzia, decidi tomar sol no meu quintal e desfrutar dos acordes daquela estranha canção tocada pela vizinha. As notas que escorregavam para fora da janela eram cartões postais do seu estado de espírito. Eu gostava quando ela tocava alguma balada dos Beatles. Eram versões simples e delicadas. Quase contidas. Como uma menina cabulando aula, ela permitia interromper uma execução pela metade. Ou emendar notas que não diziam respeito à mesma musica.

Em uma de nossas conversas na madrugada, pois agora era assim, conversávamos de madrugada nas pausas para o cigarro tentando enxergar as estrelas nos poucos metros quadrados de céu que nossos pequenos quintais dispunham. Ela, pausando a sua pintura, eu pausando os meus textos, fumávamos juntos no quintal separados por um muro. Conversávamos sobre saudade. Sobre a solidão nas grandes cidades. Ela confessou que nunca havia andado de metrô pois tinha muito medo. Disse que era professora de piano e, vendo os meus olhos, ofereceu-se para me ensinar. Sem cobrar. Apenas pelo prazer de ensinar um instrumento.

Depois disso eu fui embora. Mudei de casa. De vez em quando passo na frente da casa da dona Luzia e penso em tocar a sua campainha para saber se ela ainda mora lá, se ela ainda está viva, se ainda teríamos um para para bater,  um cigarro para fumar e uma xícara do café que ela fazia. Que talvez ainda faça. Quem sabe sentar no seu piano para ver se ainda lembro dos acordes da única canção dos Beatles que eu consegui aprender nos meses de aulas semanais, tardes sem perspectiva e uma vida ainda esperando por mim.

Um comentário:

melina disse...

eu lembro disso tudo, mas estou confusa com alguns detalhes...

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