sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Faz tempo que não vejo um bonito sol cair. Faz tempo que não vejo uma bonita lua cheia. Faz tempo que não vejo a chuva chegando do longe até eu. Faz tempo que não sinto no vento um cheiro estranho, que me faz ter vontade de chorar, ou de voltar atrás ou de correr contra ele sentindo os fios dos meus cabelos se desprendendo. As rugas se esticando até eu ser bebê careca. Faz tempo que não sou eu aqui nessa cidade. Mas eu tento.

A cidade pede um outro olhar. O olhar que precisa algum exercício, não o olhar do conforto. Não a vida entendida. A cidade pede a vida descoberta. A vida com verbos externos. Perco-me em necessidades do corpo e sinto minha alma pequenina. Meu corpo está vivo, mas minha alma eu não sei onde pegar.

Ontem li o livro novo da Phrann e, oh Jesus, ela tão melhor do que eu jamais serei. Eu queria ser ela quando escrevesse. Ela não termina nenhum dos livros que começa, e nem precisa. Conheço a Phrann desde que somos crianças e ela era a menina mais estranha da escola e o nosso primeiro contato foi quando ela me pediu o “Guia das Profissões” emprestado. Ela, assim como eu, também tinha vontade de sair de Lajeado e conhecer outras pessoas. Ficávamos olhando todas as possibilidades de nós mesmos dentro da capa azul do “Guia das Profissões” e sonhando com qualquer terra que fosse longe da nossa. E  saímos de lá, abandonamos nossas pequenas almas muito antes do esperado. Voltamos de vez em quando. Como olhar para as fotografias de um álbum esquecido em alguma gaveta na casa da mãe. Como encontrar, sem querer, a carta de um amor antigo dentro de um livro que esquecemos de chegar ao fim. Como se encontrar no espelho no meio da madrugada e ficar mais tempo mergulhado na penumbra dos próprios olhos no vazio do banheiro. Os carros atravessando a cidade fria. Os ruídos no apartamento de cima. Os cachorros latindo longe.

Mas nossas voltas, as minhas e as dela, nunca mais se encontraram. Quando eu estou por lá, ela está longe e quando eu estou longe, ela está por lá. Como uma coreografia, como se fosse esse o nosso combinado, talvez sejam esses os passos certos a se dançar. Talvez assim dure para sempre um amor que atravessa os anos. Nos redescobrimos nos originais que trocamos. Nos reinventamos nas músicas quando escutadas juntos mesmo que separados por milhares de quilômetros. Nos entendemos quando passamos mais tempo no MSN do que nossos patrões internos gostariam que fosse. É assim que consigo amar quem é família. Indo sempre mais para o longe. Mantendo todos eles, os amados, em lugares que não posso estar. Sentindo mais a saudade do conviver do que o cansaço de uma convivência. Fazendo a convivência um instante ínfimo, sempre perdido entre duas partidas. Mas eu sei, eles também (pois somos feitos da mesma matéria), que o amor é o tempo quando insuportável.  Que a verdade é conviver, conviver, repetir, suportar o nada das histórias quando recontadas. Recontadas. Recontadas. Nós fingimos tão bem. Eles e eu.

Ontem acordei pensando na avó que me criou. Ela está cansada. Ou não. É preciso não entender mais dos outros do que eles mesmos se entendem. Quando penso nela, ela já está morta. Embora ainda habite a mesma casinha que me fez crescer. Ao lado do meu avô que ontem fiquei sabendo ter feito mais uma cirurgia nos joelhos. Ele sonha poder caminhar e ir andando até o centro de Lajeado e pegar a sua aposentadoria e depois passar na loja de discos e comprar um disco d’Os Serranos como ele fazia todos os meses desde que eu era pequenino. Mas ele não sabe que discos não existem mais. Nem as irmãos Gastão, as solteironas, afundadas em pilhas de vinis e fitas k7 pirateadas com capas brancas datilografadas. Ele sonha com o dia em que seus passos o levarão sozinho até o Banco do Brasil, sem saber que as araucárias do Alberto Torres não estão mais lá para contar para ele mesmo, os detalhes da própria história. Ele não sabe que a cidade cresceu e que é quase certo que ele será atropelado pelos carros que voam sobre o asfalto. Seus joelhos ficaram inúteis. Dessa vez para sempre. Como o asfalto quando cobre paralelepípedos, a poesia das palavras difíceis quando a prosa perde a dificuldade, a inutilidade da beleza para os caminhos retos, ele não entenderá a cidade se esvaziando de si. E ele será eu. Nós dois chorando sobre o mesmo tumulo. Nós dois órfãos de nós mesmos. Do que fomos. Do que seríamos se nunca partidos.

No meu íntimo eu desejo que ele nunca mais caminhe.  Que a geografia do seu passado não se mutile em novos andares solitários. Caminhar sozinho é perigoso. É sempre possível encontrar-se consigo mesmo na próxima esquina. É certo que. É mais fácil percorrer os caminhos quando conhecidos. É sempre mais bonita a cidade que nos fez crescer. É sempre mais doce o tempo da memória. O mesmo sol caindo no mesmo horizonte alheio ao eixo do planeta que se desloca tão veloz. Os mesmos dias e as mesmas horas que encurtam como sempre mais. Todos percebem, poucos entendem. O mesmo vento trazendo um tempo que ficou para trás. Antes das tsunamis, dos furacões, do fim dos dias. Todos caem. Todos cairão. É mais belo o dia quando não hoje. Será mais linda a terra quando o não agora.

As naves vieram. As naves virão.

Enquanto o passado não volta, me cerco dos objetos antigos. Das roupas usadas por pessoas que não conheci. Dos vinis arranhados por ouvidos que foram eu antes de mim mesmo.  

Para quem já nasceu triste, o mundo não deixará nunca de ser.

Um comentário:

leila fletcher disse...

a lua estava linda ontem ;-)

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