sábado, 24 de maio de 2008

olho para o meu rosto no espelho do banheiro. não há nada de belo dentro dele. é o rosto de um homem. não há nada de belo nisso. nem nas histórias que não me contém.

 do outro lado da janela o sol queima a cidade. do outro lado do mundo a minha casa está vazia. os meus pais. onde estão? em algum ponto da cidade eles esperam por mim. em algum ponto da vida eles desistiram de esperar. é sempre mais confortável mandar embora aquilo que pode nos ser estranho. aquilo que um dia possa vir a nos ameaçar. assim foi. ou assim será. estou perdido no tempo e confuso entre presentes. o limite exato. o último instante. quando o futuro passa à condição de passado. é nesse instante em que me encontro. sempre fugindo daquilo que tento encontrar. 
os meus pais olham o tempo passar por mim, mas não são capazes de observar. os sentimentos sempre confundem a visão do aflito e a realidade se distorce e se confunde em tanto e tantas mentiras adquirem o doce gosto da verdade sem que para isso tenham sofrido qualquer alteração na sua essência. bob dylan cantando hurrycane sem saber que absolvia um culpado. a segurança dos que não se levam a sério. quem nunca se levou nunca se levará.
I'm talking about you bitch.
putinha maquiada do outro lado do espelho.
I'm talking to myself bitch.
putinha maquiada do outro lado do espelho.
e eu sei que dentro do seu olhar você carrega toda a fatalidade do tempo que já começou a te consumir. a vida nunca mais será doce. você entenderá cada vez menos sobre tudo. menos sobre você mesmo. você irá chorar com muito mais frequência, mas as lágrimas serão tão poucas. cada vez menos. você falará mais e a sua voz adquirirá tantas certezas. mas o seu sono será a insônia e as dúvidas só ganharão tamanho e as doenças redesenharão a sua dimensão em todas as noites, a cada noite que o sono não vem. você alcançará todos os seus sonhos. e mesmo assim não irá sorrir. e mesmo assim não irá acreditar. a medida que os sonhos acordam as verdades adquirem o perigo de uma escada cada vez mais alta. o equilíbrio se faz mais necessário a medida que a altura aumenta. a morte é sempre mais perigo quanto mais longe estamos do chão. segure-me. só não espere de mim que eu te entregue a minha alma.

de frente para o espelho eu disfarço. e desenho fios amarelos em volta dos olhos. eu tento mentir sem entender que as imagens são mentiras que desenhamos para que todos acreditem, menos nós mesmos. como que faz de conta que tudo está bem. e assim o mundo melhora. a vida perde todo o seu estranho. e existir se torna simples. por um instante que seja. como dilatar o tempo quando se torna raro e pequeno os momentos mais bonitos? eu sou um garoto normal mas eu maquio o meu rosto quando a casa está vazia. eu sou um garoto normal mas eu tenho quase trinta. eu sou um garoto normal. mas eu finjo que não. tão bem que até sou. até que posso ser. 
um dia eu serei um homem. um dia eu serei tudo o que ela espera de mim. tudo o que ela pensa que eu sou quando sai de casa e eu sei que por mais que ela demore para voltar, ela sempre voltará antes do esperado. o barulho da chave penetrando a porta nunca será belo. nossos abraços nunca serão inteiros. e eu nunca conseguirei aceitar toda a beleza que os seus olhos trazem somente para mim. quando foi que começamos a nos perder? quando foi que eu deixei de te precisar. quando foi que eu te matei pela primeira vez. eu te beijei com força sem saber que a força dos meus dedos em volta do seu pescoço te machucavam com tamanha força.

o chuveiro está ligado e o vapor desfaz os contornos precisos do meu rosto de homem. do outro lado do espelho eu posso ser tudo o que não quero. talvez eu seja. talvez eu precise dele para me mostrar a verdade da qual eu preciso fugir. os vincos acumulando poeira. as extremidades da minha boca pendendo para o chão. os risos da adolescência para sempre ecoando dentro do banheiro vazio. os meus olhos. tão cinza. os meus olhos. tão fundos. os meus olhos. tão longe. no quarto toca uma gravação antiga dos carpenters. ecos de um tempo que não foi meu. ecos de uma vida que nunca seria a minha. os ossos acentuam o contorno da minha pele e a magreza me deixa mais homem do que eu gostaria de ser. por mais que eu tente ser magro. por mais que eu espere ser belo. por mais que eu deseje ser aquilo que não sou. eu nunca serei ela do outro lado do espelho. fecho os olhos para que meu rosto receba uma primeira e fina camada de pele ainda mais clara. sempre mais jovem. a falsidade sobre os poros velhos demais. a suavidade da esponja e todos os carinhos que eu nunca senti. a ponta dos seus dedos sobre mim quando eu te amei. a ponta suave dos seus dedos sobre o meu rosto. quando você me amou. a ponta suave dos nossos corpos se tocando pela primeira vez. quando um dia nos amamos.

 o sol se desfaz contra a neblina do chuveiro e os meus contornos assumem a doçura de um castiçal antigo. descrevo pequenos raios no contorno dos olhos e eu serei sua se você me quiser. abrir os olhos é sempre descobrir o real.

a casa está vazia. procuro a maquiagem perfeita. o contorno ideal. a espessura exata. a casa está vazia e eu posso ser eu. antes da queda. antes da surra. antes do banho. o chuveiro está ligado e antes que eu entre embaixo dele eu ainda posso ser eu. antes que ela escorra do meu rosto e se lave até o ralo eu ainda posso ser eu. antes que ela parta e eu me veja sozinho. antes que eu me bata. o chuveiro está ligado como quem avisa que o fim existe. os diagnósticos quando são positivos. os falsos negativos. as janelas imunológicas. as taxas quando atingem alturas inconcebíveis. as metástases. os quadros quando irrevertem.

o chuveiro está ligado dentro da casa vazia. a pintura não dura para sempre. o meu rosto sempre será o mesmo. por mais que eu tente que não. por mais que eu finja que sim. sempre haverá um homem por baixo de mim.  o limite indefinido do meu pau sempre cresce pelos motivos menos compreensíveis. pequenas cócegas contra os lábios tão finos. o batom me tinge em vermelhos e eu sangro pelo que nunca serei. pincéis de mágoa contra as pálpebras fechadas. os lilazes nunca reluzem quando enfeitando a mim. as cores nunca me furtam. os furos pequeninos fios negros que nunca abandonarão o meu rosto. pequeninos espessos fios negros arrebentando a pele para me fazer mais eu. grotecismos. grotescidades. nomes feios. palavras de som nojento. pequeninos buracos negros do que sou crescendo no meu rosto. a tristeza da mulher barbada na tarde de segunda-feira. o circo quando dobra a sua lona. a vida quando as luzes se apagam. 
eu nunca serei sua. eu nunca seria ela. eu nunca serei uma. se de algum eu sempre serei, serei minha até o fim. as punhetas quando em frente ao espelhos. os cabelos quando pingam sobre os ombros frios. o volume quando pulsa entre as pernas. a gilete quando segura na mão esquerda. o corte quando rápido. a vida quando não mais. a tarde quando a última. 

do outro lado do espelho eu sou uma mulher. um pouco grande demais. um pouco velha demais. quantos paus despertariam do seu sono ao me ver assim? meu pai? algum ator da televisão? o garoto que entrega jornais todas as madrugadas e passa por mim quando volto para casa sozinho em uma noite de sábado?

eu estou pronta. meu gênero se transmuta em outras e eu teria um nome se a mim fosse dada a benção de um batismo. é preciso mostrar para vir a ser. é preciso julgar para absolver.

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