terça-feira, 3 de fevereiro de 2009













O rio descia na nossa frente e ele estava pesado. Corria na direção da cidade e, antes da curva, ele não brilhava. As nuvens estavam baixas e, muito antes do que pudéssemos prever, os dois, água e céu, viravam uma coisa só. Os pinheiros não balançavam pois não havia vento. O meu pé empurrava o seu para cima e o meu seu pé empurrava o meu para baixo. Nossos tênis esfregavam um no outro o barro da estrada de terra. De vez em quando você parava. E era sempre eu quem tinha que recomeçar. Pensava em muitas coisas para te dizer, ensaiava respostas para perguntas que você não fazia e, quando voltava para casa, a certeza que eu levava para o quarto era que cada dia era um dia a menos. Olhava para as paredes pensando no dia em que eu não estaria mais lá. ouvia o barulho da televisão e sabia do tempo em que eu sentiria saudade daquele instante. Era um pouco estranha a sensação de estar auto-exilado dentro da própria casa. o cheiro do cigarro dos meus pais avançava pela pequena janela que dividia o meu quarto da cozinha, onde eles passavam a noite vendo televisão deitados no sofá de veludo marrom. Fumando debaixo de algum cobertor ao lado do fogão à lenha. Entre julho e setembro eles comiam pinhão. A pia da cozinha afogada em cinzas de cigarro e casca de pinhão no outro dia de manhã, quando eu acordava sozinho para ir à escola. Enquanto calçava o tênis para sair, o radio-relogio ao lado da cama deles despertando no ultimo volume não era o bastante para tirá-los da cama. Quando abria a porta o ar gelado era limpo. Não tinha cheiro de cigarro. As ruas não tinham cascas de pinhão entupindo os bueiros e o mundo fora de casa era um lugar melhor para se estar. Do outro lado do jardim de ervas daninhas, a calçada quebrada por raízes de arvores antigas estragava a paisagem perfeita e cimétrica todas as calçadas que não eram a nossa. Os jardins com pequenos arbustos e grama curta eram acessos para mundos que eu não conhecia. Que talvez fossem melhores do que o meu, mas que eu não queria experimentar. A solidão da calçada desenhava meus passos o caminho mais distante entre as duas portas: a da escola e a da minha casa. Atalhava procurando uma distancia cada vez maior entre as duas portas. Respirando sempre por mais tempo o ar não contaminado dos espaços fechados. Como um mergulhador medindo o tempo eu retinha nos pulmões fechados um ar limpo pelo maior tempo suportável. Antevendo o que viria, fazia da rua a minha casa. fazia do não pertencer o meu bem-estar. e preparava minha família para a despedida que, muito antes do que eles podiam imaginar, viria a acontecer. Entre ser o filho perfeito e ser o filho da vergonha, o melhor era causar vergonha. A despedida seria menos dolorosa. A falta seria menos sentida. Tentava controlar o que despertava nos outros para não ter deles amor demais. Amor demais significava sofrer na hora de ir embora. O amor demais que eu não queria sentir não me deixaria partir. Era um canto da sereia me levando para baixo. Para a morte. Para o não mais eu. E eu não amei o quanto eu deveria, eu não podia. E eu não deixei que eles amassem o quanto eu precisava, eles não podiam. Quando chovia era ruim não poder sair. Nos dias frios era ruim não poder sair. E quando eu passava tempo demais dentro de casa o medo de morrer crescia. E a morte nascia de dentro dos instantes mais imprecisos. Minha mãe servindo um prato de arroz sobre a toalha xadrez. O prato marrom transparente cheio de riscos opacos. Minha irmã conversando com meu pai. Ele prestando atenção nas noticias da televisão. O volume cada dia mais alto. Eu não estava lá. E, antes de sentir raiva eu sempre sentia saudade. E observava o curso da minha casa como um viajante que sabe que não está mais lá. mesmo dentro dela, eu observava a minha  casa de fora. Sentindo uma ponta de nostalgia em cada gesto que deixava de ser. Capturava o ultimo instante antes do sorriso da minha mãe deixar de ser real. Gravava na retina os dedos da minha irmã arrumando os cabelos e dedos do meu pai acendendo mais um cigarro. E existir era uma sucessão de retratos que eu sabia que nunca mais iria esquecer. Você empurrando o meu pé para baixo. Eu empurrando o seu pé para cima. O barro da estrada de terra. Os passarinhos silenciosos no meio da tarde de inverno. Os pinheiros pingando neblina. E nós. E nossos pés.  

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