terça-feira, 29 de abril de 2008

Quando eu comecei a cansar do Rock'n Roll







Houve um tempo quase mítico que fez parte de mim. Quando os primeiros baseados nos desencadeavam novas percepções do universo. De espaço. Do tempo. Eram tempos frios aqui no Sul do Brasil. Eu não tinha idade e contava os anos pelos que ainda estavam por vir. Fumávamos na calçada bebendo um vinho de garrafão e aquecíamos os braços sentando grudados contra a vitrine de alguma loja que ainda mantinha as luzes acesas e os degraus livres de grades. O vento corria entre nós e ele era o gelo e era dele que precisávamos nos abrigar. O vento vinha de lugares distantes e soprava na direção de paisagens nem sonhadas. Era somente em nós mesmos que poderia haver algum calor. Era somente no instante eterno que queríamos nos encontrar. Éramos aquilo naquele momento. E nada mais. Nada viria de outro lugar que não fosse de nós mesmos. De nós sete. Nós oito. Não sei. 

Sempre havia tempo para mais um copo antes de voltar para casa. Sempre havia medo a cada cigarro fechado. A cada tragada engolida.  Cada alucinação continha a possibilidade da perda de algum controle e a queda sempre nos esperava em algum lugar que ainda não havíamos ousado conhecer. 

Eram bom os dias do rock.

Pouco a pouco descobríamos que não éramos tão solitários assim. Pouco a pouco o mundo foi chegando até nós e, através da internet, fomos nos reconhecendo em lugares distantes. Retratos de nós mesmos chegavam de lugares onde nunca havíamos estado. Nossos vinis perdiam o formato e os sons eram apenas alguns acordes sem brilho compactados e transmitidos via cabos invisíveis a velocidades cada vez menos impressionantes. O mundo se tornou veloz e tudo foi rápido demais. O que era feito só de nós se diluiu em uma imensa massa cinza e ficamos assim, órfãos de nós mesmos, nos reconhecendo em todos, menos em nós. Vazios de tanta informação. Perdidos atrás de tantas máscaras que o mundo criava para nos confundir. O presente deixou de existir e o tempo exato já se fazia passado antes mesmo de acontecer.

O mundo perdia a sua graça. Pouco a pouco tão veloz. Os anos nos acumulavam cansaços, nós egolíamos verdades e íamos, pouco a pouco, todos nós, cada vez mais para longe um do outro. De nós mesmos. Como as histórias de amor quando chegam ao fim, assim demos por terminada as nossas noites de vinho na calçada. Demos por encerrado o mistério na torre da igreja. Demos por surdos nossos ouvidos para os riffs de guitarras e os solos de bateria que outrora nos moviam os dias e nos alimentavam a alma. O mundo ficou sério e, por mais que tentássemos, nunca mais seríamos os mesmos garotos escutando Radiohead pela primeira vez sem entender a melancolia dilacerada na voz de Thom Yorke. Eu nunca mais seria o menino que chorou Smiths numa tarde de inverno sozinho no seu quarto com o conforto de um mundo inteiro ainda a ser descoberto.

Eu fui embora. Todos foram embora. Eu parti de mim mesmo e assim os outros e assim as calçadas dessa cidade ficaram vazias de nós. Mudas de nossas risadas. Cegas de nossos delitos. Ensaiamos reencontros mas as nossas mãos já estavam frias demais e nem todo o vinho do mundo seria o bastante para que o vento gelado não nos fizesse voltar correndo para casa cada vez mais cedo. Com a melancolia dos casamentos desgastados pelo tempo, nossos encontros eram cartões-postais das certezas que acumulamos em nós. Eram gravações dos nossos vazios. Eram silêncios que nenhuma canção seria capaz de traduzir. Para longe do que fomos seguíamos. E seguimos a cada dia que passa. Para longe do que nunca mais seríamos outra vez andamos certos de que existe algum futuro. De que amanhã teremos tempo. De que ainda teremos sorte.

Os anos nos acumularam em certezas e eu tento acreditar que um dia eu ainda vou ter aqueles amigos de volta nem que seja por somente mais uma noite. Eu quero acreditar que um dia nos olharemos dentro dos olhos e enxergaremos um abismo de possibilidades futuras no lugar do cemitério de ilusões que hoje povoa o olhar de cada um de nós. Os anos nos fizeram cansados, mas eu tento sonhar todos os dias com o dia em que eu consiga sentir pela primeira vez uma outra vez os primeiros acordes de Suedhead e sentir vontade de chorar e ter medo de perder o controle de mim mesmo e sucumbir meu corpo sob a avalanche de sensações que uma única canção pode desencadear em mim. Eu espero, com a paciência do tempo, amar um dia como eu amei nos que passaram. E chorar sobre a alguma canção que me faça entender pela primeira vez o que nunca teve explicação e me faça acreditar que, nesse único momento, eu sou o único a conhecer algum segredo que ninguém mais ousaria supor.

O rock morreu. Choro sobre a sua lápide. Espero um tsunami que leve para longe todos os jornalistas de rock. Todos. Todos aqueles que não o deixam descansar em paz. Todos aqueles que não permitem o seu fim. Que não entendem que o solo precisa descansar. Que novas sementes precisam de silêncio para criar as suas canções. E que novos garotos precisam de sossego para que as suas notas aflorem com o espaço e o tempo necessários. Choro sobre todas as Mallus Magalhães que os abutres do jornalismo despedaçam sem piedade. Choro sobre os pequenos. Pobres coitados. Choro sobre mim antes de todos os outros. Pela minha burrice. Pelos meus medos. Pelas ilusões que eu perdi. 

Espero algum renascer, mas ele é tão longe. Em algum lugar onde ninguém sabe chegar. Em alguma rua escura de alguma cidade do interior um pouco antes de o inverno chegar. Eu espero onde nenhum consiga me tocar. Sozinho. Para sempre. Para mim. Antes de voltar outra vez. E ter tudo de novo. E perder. Para ter sobre o que chorar. E para sempre criar espaços novos onde eu possa me habitar eternamente antes de me despedir pela última vez sem saber que o fim contém em si mesmo o próprio início. E viver a certeza cíclica de um eterno despedaço. Em constante desencanto. Um aprendizado para sempre. 















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3 comentários:

Viralata disse...

lindo! arrasou, já linkei... e para de ficar mudando...beijão

lili na cidade disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
lili na cidade disse...

é, eu ainda não cansei do rock, e espero não cansar...
quando as coisas perdem o encanto deixam de existir e a velhice chega.
também não canso de pessoas, pelo menos não de todas
nem tão rápido como você, é muito triste.

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