quarta-feira, 30 de abril de 2008

LEAVE THE KIDS ALONE















Eu tenho uma vizinha que é uma senhora velha e de origem alemã e que mora aqui nessa rua desde quando eu era pequenino. Naquela época ela ainda trabalhava de operária em uma fábrica. Faz alguns anos que se aposentou e desde então o seu passatempo preferido é cuidar das crianças de toda a vizinhança. Ela nunca teve filhos e nem nunca teve um marido. Nesse verão ela me viu entrar no carro e perguntou aonde eu estava indo. 
- Tomar banho de rio.
- Eu queria ser homem (longa pausa). Se eu fosse homem eu iria tomar muito banho de rio.

Mas ela é mulher,  o que faz com que ela atravesse todas as tardes e todas as noites pendurada na janela da sua casa, olhando para a rua, como um triste espantalho indefeso coberto de pássaros e suja de merda.
 
Quando eu chego de madrugada vindo de alguma festa ela sempre está do outro lado do vidro sorrindo para mim. Uma noite ela disse para eu não me preocupar porque agora ela era "o guarda da rua". Ela traz um sotaque carregado que as velhas gaúchas trazem. Esse sotaque que vai ficando cada vez mais forte à medida que a morte se aproxima delas. Como se elas precisassem voltar ao que um dia foram. Como quem vai deixando os pesos para trás, a língua-mãe retorna em uma velocidade impressionante e elas se confundem e trocam os idiomas e não entendem como podem ser entendidas pelos outros quando mal elas mesmas conseguem se entender. Sotaques assim me enchem de saudade dos meus avós quando eu era criança. Sotaques voltam aos meus ouvidos e contaminam-me as próprias palavras quando passo a conviver perto deles por tempo demais.

A minha vizinha gosta de cuidar de crianças. Especialmente de meninas. Sempre que alguma mulher da rua engravida, ela imediatamente se candidata para cuidar da criança. Basta uma mulher descobrir-se prenha para minha vizinha desenvolver uma estranha obsessão pelo diagnóstico do sexo do bebê. Se o diagnóstico confirmar a sua expectativa, a velha enlouquece de euforia a espera da mais nova garota da rua. E as mães, estranhamente, se enchem de satisfação por ter uma velha obcecada por garotas para ajudar a cuidar da prole. Desde a sua aposentadoria tem sido assim. Se ela vê uma grávida ela já avisa que "se for menina pode deixar que eu cuido, eu faço tudo". 

Não sei se é um reflexo do que se passa nos noticiários, mas a cada dia me sinto menos confortável na presença de crianças. Crianças longe dos pais então, eu fujo. Não pretendo nunca mais ficar na companhia de uma criança sem a presença de algum responsável por ela. Com essa avalanche de pedofilia correndo solta eu é que não vou correr o risco de ser visto como o depravado da rua. Vai que a criança resolva se apaixonar por mim? Querer sentar no meu colo? Pedir para eu fazê-la dormir? Medo. 

Não sei se eu sou o único que enxerga a minha vizinha como a depravada da rua. Talvez todas as mães a enxerguem dessa forma, mas talvez seja mais fácil correr o risco de ter a xoxota da filhinha lambida por uma velha do que precisar aguentar a pentelha o dia inteiro colada na barra da saia. "Criança cansa demais. Que bom que tem a vizinha que gosta de meninas." Parece surreal, mas eu já escutei essa frase algumas vezes na cozinha da minha própria casa. 

Não que a culpada pelo assédio dos pequenos seja sempre a negligência dos pais. Mas na maioria das vezes é.

Essa minha vizinha cuida há muitos anos de uma garotinha pobre. A cor da pele da garota contrasta com a cor de todas as crianças da minha rua, mas a garotinha convive bem com todas elas. Todos se aceitam e se respeitam aqui no Sul, precisa ver que lindo que é!

Ontem a moça que trabalha aqui me contou a história da garotinha.

A mãe dela tem aids. Casou com um cara e esse cara come todas as filhas dela. Deduzimos que, se a mãe tem aids, é provável que a garotinha também tenha. Caso a garotinha tenha nascido antes da doença da mãe, é bem possível que agora ela tenha sido contaminada pelo padrasto, uma vez que ele transa com todas as filhas da esposa. 

Tempos modernos. Europa brasileira. O Sul é mesmo o Brasil que deu certo.

Penso na mãe dessa garotinha que entrega a própria filha para a velha esquisita cuidar durante o dia e para o marido comer à noite. Penso na mãe dessa garotinha que entrega todas as filhas para o marido comer dentro de casa. E penso que não é preciso ir muito longe, nem chegar perto da Áustria, para sentir nos meus olhos o olhar de tantas crianças tornadas adultas cedo demais pelas mãos de quem somente deveria saber lhes dar amor.

Casos de pedofilia são tão frequentes aqui no Sul do Brasil, mas ninguém comenta. Estamos muito mais perto da Áustria do que podemos imaginar. Não me refiro a nível cultural, qualidade do ensino público, transparência política, preservação ambiental ou avanço hospitalar. Me refiro sim a jovens suicidas, velhos pedófilos e drogas pesadas ao alcance de qualquer um. Somos quase uma Europa. Vivemos a falta de perspectiva dentro de um cenário perfeito. Em uma cidade higiênica as pessoas são de bem e  as famílias são exemplares. Os filhos são bem criados, os casamentos são bem postos e as escolas são respeitadas. Somos mesmo uma sociedade perfeita e liberal. 

Mas talvez o peso de toda essa perfeição seja insuportável para quem ainda não tem força para entender o lado negro escondido atrás do olhar de cada pai de família. A fraqueza estampada na cara de cada mulher quando ela entrega os próprios filhos ao monstro que as promete algum tipo de amor. O pânico não encontra saída e, frente a tanta perfeição, a morte às vezes pode ser o caminho mais rápido para sair daqui. A culpa quase sempre vem servida junto com o prato de comida e o preço a ser pago é, muitas vezes, caro demais para quem ainda não entende a medida exata de cada valor. 

Em um mundo perfeito demais fica complicado sentir-se forte o bastante para ser merecedor de o habitar.

Tristes tempos no Sul do país. Tristes ventos nos trazem o prenúncio de um inverno rigoroso. As camas serão aquecidas para que velhos pedófilos desenruguem seus pintos sujos em mãos frescas de infância. Noites sem fim para os pequeninos indefesos. Nem todo o perfume do mundo será o suficiente para apagar da memória o cheiro do sêmen do próprio pai grudado nas entranhas mais profundas da alma.

E assim seguimos atravessando os dias. Como se cada dia fosse fácil de aguentar. Como se a vida fosse bela. Como se todos estivessem bem.




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6 comentários:

Milho disse...

o sul é a europa latina, realmente...

ah, e cuidado com a sua vizinha...

Alien disse...

eu sinto dor pelas pessoas que se abortam para viver da vida dos outros.

Alien disse...

o que me conforta é que nenhum corpo ou alma suporta mais que a última gota possível.

eu olho as pessoas e fico imaginando as frestas que elas tecem para fugir para que consigam suportar isto tudo que a gente nem sabe chamar pelo nome.

eu sempre vacilo entre me preservar e me suicidar.

alberto disse...

querido, a áustria é aqui. o sertão é dentro, lembra? bj

geheimnis disse...

Alberto,
o sertão é um lugar que eu nunca procurei. dele apenas conheço o nome. já a austria... essa impregna tudo o que está a minha volta.
um dia entenderei o sol. e escreverei sobre ele. obrigado pela sua visita. vc sim me prestigia! lembrei do post onde vc falava sobre isso!

Alien,
o que me conforta é que o que não mata nos fortalece. pode ser simplista mas é sempre esse o lado que prefiro enxergar. embora possa parecer que não!

alberto disse...

meu caríssimo, acho que 'áustria' e 'sertão' são dois nomes para uma mesma coisa. deixo um beijo. e saudades.

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